UM NOVO TEMPO


Quando desembarcamos em São Miguel Paulista, há uma década, trazíamos conosco um legado. Nele, estava presente a história de minha mãe naquele território. Não era raro cruzarmos com pessoas que a conheceram, conviveram com ela e participaram de seu trabalho à frente do Corpo Municipal de Voluntariado, como primeira-dama da cidade. A criação da Fundação Tide Setubal, com meus irmãos, foi a oportunidade de ressignificar suas ações, que, já na década dos 1970, acreditavam no empoderamento da comunidade e no trabalho conjunto para a redução das desigualdades.

Somamos aos seus princípios a criação de uma fundação familiar que acredita no investimento social com foco no enfrentamento das desigualdades e na busca de igualdade de oportunidades e de justiça social. Essa é a diretriz de nosso trabalho e também tema de um dos grandes momentos de celebração dos nossos 10 anos em 2016: o Seminário Internacional Cidades e Territórios: encontros e fronteiras na busca da equidade.

Esse grande encontro, realizado em parceria com a Folha de S.Paulo, foi precedido de rodas de conversa na zona sul, leste e no centro da cidade. Para nós que acreditamos na importância da escuta e do diálogo com o território, era essencial mobilizar a participação dos moradores das diferentes regiões, buscando a integração de diferentes vozes. Essas reflexões apoiaram a formulação do seminário.

Como tornar a cidade mais receptiva a todos os seus habitantes? O que fazer para superar os inúmeros desafios que marcam o cotidiano das metrópoles? Qual o papel do território e da participação dos cidadãos no desenho de políticas públicas para abordar esses problemas? Para responder a essas perguntas, reunimos diferentes especialistas, que debateram com mais de 800 pessoas desafios e proposições para a cidade. Hoje, é possível rever as discussões em uma série de vídeos que registraram o evento.

E, por falar em registros, outro momento de grande alegria nesse marco temporal em nossa história foi o lançamento das publicações Famílias e Conexões Territoriais – uma experiência no enfrentamento das desigualdades na zona leste de São Paulo e Conexão São Miguel Paulista – uma década de experiências da Fundação Tide Setubal no enfrentamento de desigualdades em periferias urbanas.

A primeira apresenta e analisa a trajetória do Programa Ação Família, que busca fortalecer as famílias por meio de conteúdos e vivências para o desenvolvimento de novas competências pessoais e relacionais, ampliando seus conhecimentos e seu capital social, e assim melhorar a qualidade de vida dos participantes, estimular a maior participação comunitária e favorecer o exercício da cidadania.

Já Conexão São Miguel Paulista – uma década de experiências da Fundação Tide Setubal no enfrentamento de desigualdades em periferias urbanas apresenta os nossos aprendizados sobre desenvolvimento local e traz pressupostos metodológicos que perpassam transversalmente todas as nossas ações e podem apoiar a multiplicação de experiências em outras periferias urbanas.

As sistematizações ajudam a contar um pouco da nossa história, mas, no balanço de dez anos, os ganhos se revelam no fortalecimento das diferentes instituições da comunidade e também na transformação pessoal, experimentada por cada um em diferentes níveis e dimensões de suas vidas; na transposição de uma barreira importante, quando nos colocamos de uma forma a não compactuar com a cultura da caridade, do assistencialismo e do patrimonialismo que costumava reger as relações estabelecidas com a comunidade; na construção de um modo de fazer transparente com a comunidade e não para a comunidade, tendo como pressupostos a escuta, o diálogo, o vínculo e a presença.

O fato de sermos uma fundação familiar, sem ligação com um grupo empresarial, se mostrou como uma escolha acertada e nos deu liberdade de criação, experimentação e inovação. Além disso, nos permitiu um posicionamento político apartidário. Concretamente, fazemos articulações políticas, não partidárias, no território e para o território, visando aos interesses de desenvolvimento local sustentável.

Pessoalmente, o trabalho da Fundação transformou minha forma de enxergar as questões sociais, algo que outras experiências profissionais que tive, seja no campo acadêmico, seja na gestão de organizações sociais, não propiciaram de maneira tão intensa. A relação profunda com o território, diretriz da nossa ação, ensinou-me a olhar a partir da realidade local. Importante dizer que não se trata de ter a mesma visão que os moradores, pois, de certo, isso não poderia ser verdade. Sinto que aprendi, num diálogo fundamentalmente emocional, intersubjetivo, afetivo, ético e relacional, a prestar atenção aos detalhes do cotidiano, a observar os diferentes e, às vezes, inesperados arranjos realizados pela comunidade e a valorizar as saídas e opções criativas acionadas e estabelecidas por meio do dia a dia. Dessa forma, São Miguel Paulista passou a fazer parte de mim e da minha concepção de mundo.

Lançar o nosso relatório de atividades é sempre uma forma de avaliar nossas ações e pensar nas perspectivas do próximo ano. Ao navegar pelo nosso site, você terá uma leitura das diferentes linhas de atuação da Fundação, como as formações para o fortalecimento das escolas, buscando contribuir para a melhoria da escola pública; o apoio aos coletivos para os desafios da captação de recursos; as atividades voltadas à ampliação da programação cultural e ao letramento, como o Festival do Livro e da Literatura, que debateu o feminismo e as questões de gênero; a mobilização dos moradores do Jardim Lapenna para pensar sobre o que desejam para melhorar a qualidade de vida do seu bairro.

Entretanto, esta edição também abre um novo ciclo institucional. Fazemos isso em um momento de diversas crises e, nesses momentos, é preciso coragem e ousadia para efetuar mudanças. Como uma fundação familiar, reafirmamos o nosso compromisso de combate às desigualdades sociais num contexto de desenvolvimento sustentável, por meio do diálogo entre as diferentes posições e ações cidadãs e ao lado do poder público. As ideias de eficiência, meritocracia e resultados só adquirem sentido de fato se nós tivermos clareza que o objetivo principal de nossa ação no campo social deve ser a equidade, ou seja, mais igualdade de oportunidades e mais justiça social.

Sem abandonar a nossa origem e a partir da nossa experiência, queremos conhecer e fortalecer outras periferias, ampliar a nossa produção de conhecimento e fomentar ações de influência em políticas públicas, visando à equidade e à justiça social. Faremos esse novo caminho sem deixar de lado a escuta, o diálogo, as parcerias, a presença e os vínculos, princípios fundamentais em nossa atuação. Que venha a próxima década!

Maria Alice Setubal
Presidente do Conselho da Fundação Tide Setubal